sexta-feira, 28 de maio de 2010

UM CONTO PELA CALADA DA NOITE

SUBÚRBIOS DA CRISE

Quase meia-noite, o meu filho varre o chão do Mcdonalds, foi o melhor que arranjou - se não teria de ir arrumar carros, porque os baldes de massa secaram na crise da construção desenfreada.
Do outro lado da avenida, a minha filha despacha pizzas e se não ocultasse a licenciatura, seria considerada incompetente para meter massas no forno.
Quem me dera que ele não fosse tão bom rapaz e tão bem formado, e tivesse a coragem dos bandidos: assaltasse nem que fosse um lar da misericórdia, que não tem piedade nenhuma de nós. Melhor que ela fosse puta, numa casa fina, e andava bem melhor e seria até considerada uma senhora, desde que soubesse ser discreta. Mal por mal, não dava as borlas aquele bétinho que anda com ela a tiracolo.
Já me esquecia do mais novo: está muito desempregado - até da vida.
"Não quero saber pai: um dia o comboio há-de parar por minha causa e eu vou-me rir de atrasar a vida ao pessoal".
Olhei-o no seu ar alucinado e imberbe.
"Tens uma vida pela frente, pá, não me dês mais desgostos".
"Descansa, só te vou dar mais um: é o último" e puxou dum cigarro.
"Não vais fumar, aqui não se pode fumar" e tirei-lhe o cigarro da boca.
" Oh pai,faz a última vontade dum condenado"
" Não é faz, é satisfaz"
" Porra, ainda te preocupas com a língua?"
Devolvi-lhe o cigarro, mas ele não o acendeu, tinha o empregado à coca. O meu filho queria desistir. Intimamente, dava-lhe razão: a vida só tem sentido...quando o tem. Mas insisto: a vida tem sempre sentido, porque nada é melhor que ela. O ar fresco da manhã, o beijar alguém, até entristecer para se dar a volta num sorriso. Conheci um amigo assim: vendia sorrisos. Até depois de ficar canceroso, sorria. Morreu a sorrir. Nesse deus acredito piamente.
Ao longe oiço a gritaria duma manif dos sindicatos sem gás - o governo tá-se nas tintas: ladrem á vontade que os audis passam.
Vendo bem a culpa não é do governo, nem de deus - é de nós, amnésicos de amor.
"Dê-me mais uma bica e faça a conta". Por hoje já tenho a minha. Amanhã é 28 de Maio e eu resisto a comemorar - mas uma ditadura sobre os interesses, caía bem. De Direito, não de direita.

1 comentário:

Anónimo disse...

olha o filha da mãe já tem blogue.

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